O sobrenatural é um dos componentes mais interessantes do imaginário medieval. Inspira-se tanto nas referências pagãs da antiguidade, mitologia celta e na bíblia como nas citações de Plínio e nos relatos de viagens exóticas, como as de Marco Pólo.
Presente em grande parte das antigas narrativas, cria uma introdução muito atraente para os aspectos míticos e irreais das histórias de amor e enquadra-se perfeitamente na mentalidade do homem medieval, onde tudo é simbólico.
O imaginário medieval herdou do greco-romano todo o tipo de monstros híbridos, meio homem e meio animal, como os centauros, sereias ou esfinges; ainda grifos, dragões e unicórnios. A partir do século XI estes seres tornaram-se meros elementos decorativos. Após este período são encontradas citações de gigantes em romances arturianos e, em seguida, sobrevivendo apenas na crença de uma existência longínqua e fantasiosa.
Um aspecto interessante é a forma que o pensamento cristão medieval se adaptava à suposta existência de seres ambíguos: se estes seres possuíam alma como os humanos e se seria possível sua salvação no reino divino.
A Rainha dos Mares
Na história antiga, especificamente na obra A Odisséia, de Homero, a sereia é uma mulher da cabeça aos pés. Apenas no período medieval, provavelmente sob influência do folclore celta, que a sereia ganha o status de ser híbrido: meio peixe e meio humano.
Um dia, porém, a jovem decidiu voltar a ser humana e pediu a um mensageiro que levasse seu pedido a Deus. Seu desejo foi ouvido e Liban voltou a ser mulher. Porém, as "portas do paraíso foram abertas" (com uma possível interpretação da morte de Liban) e a jovem passou a ser venerada como Murgelt: A Sereia dos Mares.
Uma outra versão, um pouco mais complexa, aborda a mesma lenda e seus paradoxos sob a perspectiva cristã. Originada no século VI e registrada por escrito apenas no século XVII, a lenda conta que a jovem, também de nome Liban, era uma princesa sobrevivente de uma enchente ocorrida quando um poço sagrado transbordou. Liban, juntamente com seu cão companheiro, refugiou-se em uma gruta, e pediu à Deusa Dana que a transforma-se em um salmão, para que pudesse ser livre como os peixes.
O pedido da princesa foi parcialmente atendido, pois sua transfiguração não foi completa: permaneceu humana da cintura pra cima e suas pernas foram substituídas por uma cauda de peixe. Enquanto seu cão foi transformado em um leão marinho.
Assim Liban viveu por trezentos anos até que foi encontrada por um padre que navegava em direção à Roma. O clérigo convenceu a princesa a segui-lo até terra firme e lá Liban foi convertida ao cristianismo. Assim viveu por mais trezentos anos. Após sua morte passou a ser reverenciada como santa sob o nome de Murgelt (ou Murgen). Por ter nascido humana, sua alma foi para o Paraíso.
São Jorge, Preste João e os Dragões
O dragão, o corpo da serpente, com uma longa cauda enrolada sobre si mesma e, mais freqüentemente, asas, é o símbolo da luta entre as forças do bem e do mal narrado na Bíblia. Situações como essa são muito comuns nas narrativas de mártires como São Jorge que derrota o dragão e salva a filha do Rei da Fenícia. Assim como São Miguel e São Germain que perseguem serpentes aladas.
O lendário rei cristão Preste João (Padre João) teria afirmado, através de cartas de autoria duvidosa, que dragões, grifos, unicórnios e centauros; além da Árvore da Vida, o Elixir da Juventude e outras fantasias habitavam seu reino. Mas o próprio Preste João parece não ter sido mais do que uma lenda: o arquétipo do generoso rei que governava um país repleto de mistérios e maravilhas.
A origem da existência fabulosa de Preste João pode ter nascido da imagem do líder nestoriano Johannes Presbyter, que no século XII construiu um poderoso reino na Tartária, região atual da Ásia Central. No entanto, já no século XV, D. João II, rei de Portugal, munido de informações que indicavam que o reino de Preste João situava-se ao noroeste da África, precisamente na Etiópia, enviou os exploradores Afonso de Paiva e Pero de Covilhã ao local. Afonso faleceu durante a expedição, mas Pero chegou ao destino.
A Etiópia não era o reino fantástico de Preste João. Não era habitado por seres míticos nem encontrava-se poções de vida eterna e riqueza abundante. Mas Pero de Covilhã, atendendo ao convite do príncipe Naod, que assumiu o reino após a morte de Alexandre, decidiu permanecer por lá.
Uma nova expedição lusitana foi enviada à Etiópia vinte anos mais tarde com o objetivo de repatriar os portugueses que se estabeleceram na África. Pero de Covilhã recusou-se retornar à Portugal e passou o resto de seus dias na Etiópia. O clérigo Francisco Álvares, integrante desta segunda expedição, escreveu a obra intitulada Verdadeira informação das terras do Preste João nas Índias e associou os reis etíopes à imagem fantástica de Preste João e seu reino à Etiópia. Foi assim que a lenda de Preste João foi anexada à biografia de um governante real.
A lenda do Judeu Errante
Provavelmente trazida do Oriente após as Cruzadas, a lenda do Judeu Errante tem seus primeiros registros históricos em 1228 e perdura-se como uma narrativa medieval que se estende até os dias de hoje como uma parábola cristã.
A lenda conta, em uma de suas versões, que Cristo, enquanto caminhava levando a cruz em seu martírio, teria feito uma breve pausa para repouso e pediu a um sapateiro de nome Ahsverus que lhe desse um pouco de água. O sapateiro recusou-se e zombou de Cristo dizendo: "Se és filho de Deus, faça brotar água do chão". Cristo, por sua vez, disse-lhe: "Eu caminho pelo meu martírio. Mas tu caminharás até que eu volte". Assim, Ahsverus envelheceu mas nunca morreu e passou a peregrinar pelo mundo esperando a volta de Cristo e o Juízo Final para que enfim possa descansar.
Em outras versões, Cristo exaurido teria caído em frente à porta do sapateiro (que recebe outros nomes além de Ahsverus) e o artesão espicaçou-o com os pés zombando de seu sofrimento. Em seguida, Cristo lançou-lhe praga semelhante à versão anterior. Porém, desta vez, além de peregrinar pela Terra desde então, o sapateiro também leva em sua testa uma chaga em forma de cruz que sangra constantemente e uma faixa vermelha amarrada a cabeça para proteger-lhe o ferimento.
Em outras versões, Cristo exaurido teria caído em frente à porta do sapateiro (que recebe outros nomes além de Ahsverus) e o artesão espicaçou-o com os pés zombando de seu sofrimento. Em seguida, Cristo lançou-lhe praga semelhante à versão anterior. Porém, desta vez, além de peregrinar pela Terra desde então, o sapateiro também leva em sua testa uma chaga em forma de cruz que sangra constantemente e uma faixa vermelha amarrada a cabeça para proteger-lhe o ferimento.
O Purgatório de São Patrício
Narra a lenda que, orientado por Cristo, São Patrício encontrou um "buraco" (que pode ser interpretado como uma gruta ou um poço) que dava acesso direto ao purgatório. Como agradecimento, erigiu ali uma igreja e um mosteiro.
Assim, todos aqueles que desejassem, poderiam adentrar a gruta (ou poço) e, se conseguir retornar, teriam todos os seus pecados perdoados. Muitos ousavam penetrar a gruta mas não retornavam. Até que um cavaleiro inglês de nome Owen, que trazia muitos pecados em sua alma, entrou na gruta e algum tempo depois retornou. Sir Owen disse que vários demônios tentaram afligi-lo mas sempre invocou o nome de Cristo e os demônios se afastavam. Owen viu o paraíso e as almas torturadas dos pecadores; viu demônios e outras criaturas bestiais, mas retornou vitorioso.
A Fada Melusina
A fada Melusina é uma referência freqüente no repertório das lendas medievais. Assim, também recebe várias interpretações de acordo com a lenda em que surge, região e período. De uma forma mais ampla, Merlusina é uma fada que tem cauda de peixe (semelhante às sereias) e asas de morcego expelindo fumaça pela boca.
As versões mais significativas de suas lendas datam do século XIV. Tudo tem início quando o Rei Elynas, durante uma caçada, encontra na floresta uma bela dama de nome Presina. Elynas apaixona-se por ela e ambos se casam. Porém, Presina impõe a condição de que, quando tivessem filhos, Elynas não podia acompanhar o nascimento nem a visse banhando seus filhos. Presina deu a luz a trigêmeas.
Certa vez, Elynas, movido pela curiosidade, observou Presina banhando as crianças. O trato foi quebrado e a dama fugiu com suas filhas para a terra encantada de Avalon.
Muitos anos depois, Melusina, a mais velha das trigêmeas questionou sua mãe o fato de terem se refugiado em Avalon e nunca mais terem visto o próprio pai. Presina contou-lhe sobre o trato que fora desfeito. Melusina e suas irmãs foram de encontro a Elynas com o objetivo de vingar-se. Elynas foi capturado e trancafiado em uma torre junto de suas riquezas. Enraivecida pelo desrespeito ao próprio pai, Presina lança um feitiço sobre as próprias filhas e condena Melusina a transformar-se em serpente da cintura pra baixo todos os sábados.
Assim, finalmente, Melusina conhece Raymond de Poytou numa floresta da França. Ambos casam-se sob a condição de que Raymond nunca poderia observar Melusina banhando-se aos sábados. Raymond também quebrou a promessa e descobriu o segredo de sua esposa. No entanto, ambos mantiveram-se casados. Apenas quando, enfurecido, Raymond ofendeu a esposa chamando-a de serpente perante a corte, Melusina transformou-se em um dragão, deu ao marido dois anéis mágicos e partiu para sempre.
Em outras versões, Melusina foge quando é flagrada pelo marido durante o banho. Ainda, Melusina é filha de um demônio com um ser humano e a ela também é atribuída a imagem da "sereia" que rouba o filho de Lancelot, nas lendas arturianas.
O sentido moral das lendas
Lendas e parábolas ajudam a construir a personalidade de um povo, de um período histórico e de uma cultura. Também ajuda a compreender cada um destes elementos. As inevitáveis transfigurações destas lendas durante o tempo, por um lado, enriquecem o imaginário e acrescentam variações e significados importantes; por outro, podem deturpar o seu sentido original.
De qualquer forma, é a solidificação do sentido moral de cada conto e de cada personagem que, adequadamente interpretados, ajudam a compreender a sociedade e a cultura contemporânea e fazem lembrar que, em algum tempo, tudo o que hoje é realidade, poderá se tornar uma lenda.
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